domingo, 1 de julho de 2012

O que Miguel de Unamuno viu em 1908

Por terras de Portugal e de Espanha
Miguel de Unamuno, 1911


Do Bom Jesus subi ao Sameiro, por um atalho. Quando me encontrei no alto, fora das sombreadas avenidas, entre carvalhos bravios que se erguiam espaçados num solo de fetos, giestas ou urzes, e aqui e ali alguns penhascos, o meu coração respirou. Julguei encontrar-me no cimo de alguma das montanhas da minha terra basca, aonde ainda não chegaram nem os hóteis nem os funiculares.
Diante do santuário, ali edificado em 1870 e dedicado à Imaculada Conceição, o Sameiro possui uma vasta campa (terreiro). Mas campa em castelhano, não em português: em português significa sepultura. Belo espaço para as romarias!
Em redor do santuário – que nada tem de especial – andavam umas freiras muito bonitas e muito elegantes, envergando um hábito como de jardim de ópera, sapatinhos brancos e meias negras, com umas malinhas nas mãos. De facto, segundo Almeida Garrett, o efeito dos frades é maior no campo do que na cidade, pois caracterizavam a paisagem e poetizavam a situação mais prosaica no monte ou no vale. Vi claramente que aquelas freirinhas, no cimo do Sameiro, aos pés da estátua da Conceição, pareciam ali colocadas intencionalmente. Andaria ali a mão da Companhia? Ou seriam empregadas dos hotéis?
No interior do santuário, vi uns camponeses com os seus grandes bordões e um punhado de foguetes. Quando acabaram de rezar, saíram para o átrio e dispararam para o céu meia dúzia de foguetes; tratava-se de uma promessa. Isto de prometer à Virgem meia dúzia de foguetes em sua honra é algo eminentemente português. É difícil para um espanhol – não o seria para um galego – imaginar o grau de perfeição a que chegou a arte pirotécnica. Em Portugal, o fogo-de-artifício é uma coisa elevada à dignidade de uma das mais belas artes. Nela e na decoração dos jugos parece ter-se concentrado a criatividade artística português.
Afastei-me do santuário e numa pequena elevação, avistando de um lado todo o vale de Braga e, do outro, cimos pelados e bravios, encontrei-me entre vacas, ovelhas e dois pastorinhos. Teriam sido ali colocados pelos proprietários dos hotéis? Seriam empregados da Companhia? Lembrei-me da Suíça de Tartarin.
Desci do Sameiro até ao Bom Jesus por um caminho bordejado de austrálias e não pelo atalho. Vamos gozando a vista de Braga, um espectáculo realmente extraordinário.
E agora tenho de falar dos ex-votos, das oferendas. Há imensos no Bom Jesus, há-os no Sameiro.
Os ex-votos sempre me atraíram; santuário onde eu chegue e onde os haja, não consigo deixar de os passar em revista. Representam a forma mais ingénua da piedade popular. Em toda a minha vida nunca esquecerei o efeito que produziu em mim entrar na igreja de Nossa Senhora das Vitórias, em Paris, poucos dias depois de ter visitado a igreja de Araceli, em Roma. Nesta, ingénuos ex-votos, pernas e mãos de cera, muletas, tranças de cabelo, quadros pintados por mãos toscas e inexperientes; no templo parisiense, as paredes cobertas de inscrições, em paralelogramos todos iguais, como epitáfios de um cemitério. É a piedade regulamentada e geometrizada, por livro maior e livro de caixa; algo que deixa a alma fria. Recordo que, ao voltar ao hotel, desabafei no meu caderno de viagens.
Aqui, no Bom Jesus e no Sameiro, pus-me a percorrer os ex-votos. Encontram-se nos locais onde se vendem objectos religiosos, cera, livrinhos de devoção, sermões, etc. São os famigerados quadros com o doente deitado numa cama e a aparição de Cristo ou da Virgem; são também as famigeradas fotografias, já apagadas pelos anos. Ali estão os círios de oferta, entre eles um enorme, que me dizem pesar 105 quilos. Quantas abelhas não foram necessárias para fabricar toda aquela cera! E quantas flores! Sic vos non vobis melificatis, apes… [Quanto mel fabricais, ó abelhas, mas não para vós.] (Esta observação de quantas abelhas terão sido necessárias para fabricar tanta cera não anda longe daqueloutra dos que, à vista do mar, exclamam: Tanta água!)
Entre tantos ex-votos, houve dois que, por motivos diferentes, me chamaram a atenção, um no Bom Jesus, outro no Sameiro.
O do Bom Jesus é um pequeno quadro com uma flor e algumas folhas murchas, e uma inscrição dizendo: Em 14 de Março de 1874, apanhei no Bom Jesus do Monte uma camélia com a promessa de a restituir, caso ele permitisse que eu voltasse um dia a esta terra, de minha volta do Brasil. E como ele o permitiu, nesta data a devolvi como prova de fé e religião. Braga, Junho de 1895. Maria Emília Santos Major. E ali está, murcha, a camélia que a pobre expatriada guardou durante vinte e um anos no Brasil.
Poderá haver, em questão de ex-votos, algo mais delicado, mais poético? Durante vinte e um anos, aquela camélia representou para uma pobre emigrante portuguesa as recordações da sua infância, foi a perpétua saudade da pátria: Portugal, o Minho, Braga. Quem sabe de quantas más tentações não a livrou a florinha murcha!... E para ela a pátria esteve representada – enfim, era mulher e mulher portuguesa – numa flor e não num trapo, embora este não tivesse murchado tão depressa como aquela, e numa flor colhida aos pés do santuário do Bom Jesus. A religião e a Natureza tinham-na santificado.
Vi alguns estrangeiros – ultimamente, um sueco – que, vivendo num país estrangeiro, têm na sua sala de estudo ou de trabalho uma bandeirinha da sua pátria em cima da mesa de trabalho. Foi o que lhes ensinaram na escola; mas à Maria Emília Santos Major quem senão o coração lhe ensinou a levar para fora da pátria a camélia portuguesa? E está certo, está muito certo, representar por uma flor, por uma camélia, este Portugal, este jardim da Europa, à beira mar plantado. Camélia que hoje está bem murcha, tristemente. Com a sua habitual perspicácia, Carducci, no magnífico poema dedicado à morte de Carlos Alberto, o ítalo Amleto [o Hamlet italiano], que no Porto terminou os seus dias, fala-nos da cidade do Douro, junto ao “fresco rio de camélias”.
Deixemos, embora com saudade, a murcha camélia de Maria Emília Santos Major, e passemos ao outro ex-voto que me chamou a atenção.
Este está no santuário do Sameiro e consiste num cartaz, sem qualquer flor, murcha ou por murchar. Trata-se de António José da Silva, devoto de Nossa Senhora do Sameiro e morador na Rua do Conselheiro Eduardo Vilaça, número 85, que nos diz – aqui resumo o seu relatório – que soltava estranhos gritos durante a noite, tolhido em determinadas alturas da perna e do braço direitos, e que, com o céu sereno e limpo, anunciava com precisão matemática uma mudança de tempo, e principalmente as trovoadas. Esta preciosa faculdade era invejada por muitos, tanto mais agora quando parece haver tanta gente que considera a meteorologia uma ciência infusa. Faço aqui um pequeno parêntese para observar como teria gozado de grande consideração este meteorologista tolhido da perna e do braço direitos entre pescadores bascos, meus conterrâneos!
É possível que tivessem indagado se a sua ciência infusa, instintiva, procedia de Deus ou do diabo. Ao fim e ao cabo, o vigário de Zarauz, também meteorologista de ciência infusa, é ministro de Deus. (Isto para que não andem os ímpios a dizer por aí que a Igreja e a Ciência são incompatíveis…); tenho observado, aliás, que esta doença da meteorologia é epidémica e contagiosa.
Mas continuemos com o nosso António José da Silva, que nos conta como, tendo ido ao Sameiro, se curou – dos gritos, de continuar tolhido do lado direito e da meteorologia. E acrescenta estas linhas, que quero aqui deixar no original, para maior solenidade: Esta é a verdade. Expliquem-na os sábios, estas coisas como quiserem, falem em sugestões e no mais que lhe lembrar. Estão no seu campo, como eu estou no dever de agradecer a Nossa Senhora este singular favor. Singular bom senso o deste devoto! Não se põe a increspar os sábios, nem lhes aplica nenhum desses epítetos mais ou menos infamantes, como costumam fazer os nossos devotos – ímpios, soberbos… malandrins, charlatães! – não os insulta, não os lamenta, não os despreza: limita-se a dizer usando uma prudência e uma tolerância admiráveis, que estão no seu campo ao quererem explicar pela sugestão a sua cura e a sua meteorologia infusa.
E termina: Devo-lhe isto e o faço público para me mostrar agradecido. Braga, Maio de 1907. Aqui está um ex-voto racional, digno e próprio de princípios do século XX. A isto se chama dar à ciência o que é da ciência – a explicação racional do caso – e à fé o que é da fé – a gratidão a nossa Senhora. Deste devoto António José da Silva deviam aprender quantos andam buscando quer conflitos, quer harmonias, entre a razão e a fé, a ciência e os dogmas religiosos.
Sob outro aspecto, este ex-voto é tão típico, tão interessante, como a camélia de Maria Emília. Um representa a poesia delicada, a poesia feminina e das flores, do povo português; o outro o bom senso, a moderação da sua fé religiosa.
É aqui, porém, que uma suspeita perturbadora me cruza o espírito: será o cartaz realmente de António José – se acaso sabia escrever – ou terá sido escrito por algum cónego da ilustre sé de Braga, primaz das Espanhas; um desses cónegos que Camilo tão bem nos pintou? Se assim for, se no cartaz anda a mão de algum cónego bracarense, quem nos diz que, debaixo dessa serena e nobre divisão de direitos entre a ciência e a fé, não se esconde o veneno voltairiano? Certamente o leitor o leitor já deve ter ouvido dizer que o clero português é muito liberal. Não façamos, porém, suspeições maliciosas, contentemo-nos em admirar e aplaudir o bom senso de António José da Silva, o meteorologista curado. E, evidentemente, fico com a camélia. E é natural que assim seja, pois o supremo bom senso é a poesia, digam os honrados burgueses o que disserem, os que gostam de cenários com lagos e grutas. E como disse aquele fidalgo português chamado Almeida Garrett, o da imortal tragédia Frei Luís de Sousa – porque não havemos de dizer como os portugueses, imorredoura? – “Os filósofos são muito mais loucos do que os poetas e, além disso, são tontos, o que aqueles não são”. E os honrados burgueses que sobem de elevador para ver a gruta e arredores têm mais de filósofos do que os poetas, podem crer.
Desci do Bom Jesus do Monte a pé, pela escadaria monumental, …
               

Espinho,  Agosto de 1908 “






António José da Silva, morador na Rua da Boavista, então chamada Rua do Conselheiro Eduardo Vilaça.
Afinal, este bom homem existia mesmo. Unamuno ainda maquinou, se o cartaz ainda seria uma "produção" dos cónegos bracarenses. António José da Silva nascido em 1860, na freguesia da Sé, junto à Porta Nova, irmão do Eng. João Teixeira da Silva. Faleceu em 1931 na mesma casa da rua da Boavista, casa que foi derrubada em 1980, para passar a variante.




1 comentário:

  1. Boa noite,

    Adorei as imagens sobre Braga, muitas são interessantes para entender a Braga antiga. Gostaria de saber se autoriza a postar estas imagens num grupo sobre as memórias de Braga do site Facebook? Ou então poderia colocá-las o senhor.

    Cumps,
    Di.

    O referido site: https://www.facebook.com/groups/439745976040895/

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